Qual é a graça das festas de aparelhagem em Belém? São feitas em lugares apertados para o público presente, servindo de ponto de encontro para gangues e garotas de programas, palco de costumeiras brigas oriundas de muito álcool e pouca paciência, ouvindo a batida repetitiva do tecnobrega, produzida em um sonoridade absurdamente alta, acompanhada de luzes, coreografias e figurinos constrangedores para letras sobre sexo casual, geralmente denegrindo a imagem da mulher, eco dos bailes funks das favelas cariocas. É um espetáculo exagerado, cafona, com uso e abuso do ridículo e da pobreza como principal chamariz. Qual é a graça? A resposta parece evidente, mas há quem também ache lastimável jovens fantasiados de Naruto ou Power Ranger, milhares de pessoas se esmagando para acompanhar uma corda atrelada a uma imagem sagrada para a religião católica ou o fato de 22 homens disputarem a posse de uma bola durante noventa minutos. Mais do que o argumento de que "gosto não se discute", o sucesso de um evento ou fenômeno (ou manifestação sócio-cultural, para ser mais enjoado) reflete o contexto onde surgiu, implicações da época e de um cenário maior. E é esse o melhor do documentário Brega S/A: numa linguagem de videoclipe, mostrar o funcionamento do tecnobrega, suas regras, seus atores, todos ligados numa teia complexa demais para ser chamada unicamente de "lixo musical".
O tecnobrega faz sucesso porque é fruto da independência oferecida pela pirataria. Sem a necessidade do apoio de empresários ou gravadoras, os músicos desse estilo gravam e copiam seus próprios cd's (usando programas baixados ilegalmente pela internet) e usam o comércio dos camelôs para a distribuição. Se os camelôs vendem bem, a música se torna conhecida e as chances de fazer um show aumentam. E as apresentações precisam mais que playback: precisam se identificar com o público e impressioná-lo. Por isso as letras rudes falando sobre sexo rasgado e diversão (sempre entrecortadas pela voz do dj mandando abraços e recado para alguém), por isso o uso de luzes e pirotecnia nas aparelhagens. Como um dos personagens mais interessantes do documentário diz: "é uma válvula de escape (...), nosso público é o cara do comércio, o camelô, o trabalhador braçal que carrega 50 sacos de cimento e ganha 5 reais". A impressão é que, quanto mais os aparatos e ferramentas utilizadas fugirem da normalidade, maior a catarse.
O mais interessante é ver como o tecnobrega é um movimento de origem e destino semelhantes: as camadas mais baixas da sociedade. Do estúdio precário e caseiro, passando pelos camelôs cobertos por lonas azuis, até as multidões atingidas pelas incessantes batidas do estilo, o que se vê são pessoas que não de vangloriam do que fazem, apenas seguiram um caminho para garantir a sobrevivência. Um trabalho, sem orgulho, sem vergonha. Ou seja: além da popularização da internet, a desigualdade social e atraso do poder público também são fontes do tecnobrega, que, além de diversão sonora, também produziu comunidades próprias, com seus subgrupos e disputas. Ainda não se sabe se foi intenção dos realizadores Vladimir Cunha e Gustavo Godinho não dar muita atenção a este desdobramento, deixando-o mais como uma conclusão a cargo do telespectador do que como uma hipótese a ser trabalhada pelo filme. Mas não foi ruim, já que o foco do trabalho é sempre explicar a organização do estilo musical. Investir em argumentos sociológicos e acadêmicos, embora pudesse ser enriquecedor, não fez falta.
Mas fez falta mostrar mais o lado negativo da pirataria. Aliás, uma dúvida: pode ser considerado pirataria se não se registra os direitos autorais e o próprio autor distribui o trabalho sem se preocupar com os lucros pelas reprodução da música? Por exemplo, a banda baiana Djavú faz sucesso regravando músicas sem registro legal do tecnomelody paraense, enquanto os autores não ganham nada com isso. Onde a lei autoral pode ajudar? Ou tudo se resume a uma questão de (falta de) ética? Mostrar a violência da polícia enfrentando os camelôs não é suficiente para ilustrar os problemas da pirataria, principalmente porque os policiais, justos ou não, estão amparados pela lei. O comércio ilegal faz mais do que fomentar o acesso das classes mais pobres à músicas e filmes piratas. Os camelôs expõem suas justificativas, o outro lado poderia ter a chance de fazer o mesmo.
Porém, se for confirmado, uma versão estendida anunciada estará disponível para download no site da produtora Greenvision. Talvez dê mais atenção ao aspecto ruim da pirataria. Se não der, contudo, o resultado já visto vale de qualquer jeito, principalmente ao se levar em conta que os diretores pagaram tudo do próprio bolso e amargaram boas dificuldades financeiras, já que nenhuma empresa local se interessou em bancar um projeto sobre tecnobrega. É de pensar se consideraram um trabalho sobre "lixo musical", desconhecendo ou fechando os olhos para todas as questões importantes que permeiam tal manifestação. Nestes casos, é sempre bom lembrar: não se trata apenas de juízo de valor artístico ou cultural. Trata-se de fatos interligados ao cotidiano de uma cidade e, por isso, pode afetar a muitos, fãs de tecnobrega ou não.
O tecnobrega faz sucesso porque é fruto da independência oferecida pela pirataria. Sem a necessidade do apoio de empresários ou gravadoras, os músicos desse estilo gravam e copiam seus próprios cd's (usando programas baixados ilegalmente pela internet) e usam o comércio dos camelôs para a distribuição. Se os camelôs vendem bem, a música se torna conhecida e as chances de fazer um show aumentam. E as apresentações precisam mais que playback: precisam se identificar com o público e impressioná-lo. Por isso as letras rudes falando sobre sexo rasgado e diversão (sempre entrecortadas pela voz do dj mandando abraços e recado para alguém), por isso o uso de luzes e pirotecnia nas aparelhagens. Como um dos personagens mais interessantes do documentário diz: "é uma válvula de escape (...), nosso público é o cara do comércio, o camelô, o trabalhador braçal que carrega 50 sacos de cimento e ganha 5 reais". A impressão é que, quanto mais os aparatos e ferramentas utilizadas fugirem da normalidade, maior a catarse.
O mais interessante é ver como o tecnobrega é um movimento de origem e destino semelhantes: as camadas mais baixas da sociedade. Do estúdio precário e caseiro, passando pelos camelôs cobertos por lonas azuis, até as multidões atingidas pelas incessantes batidas do estilo, o que se vê são pessoas que não de vangloriam do que fazem, apenas seguiram um caminho para garantir a sobrevivência. Um trabalho, sem orgulho, sem vergonha. Ou seja: além da popularização da internet, a desigualdade social e atraso do poder público também são fontes do tecnobrega, que, além de diversão sonora, também produziu comunidades próprias, com seus subgrupos e disputas. Ainda não se sabe se foi intenção dos realizadores Vladimir Cunha e Gustavo Godinho não dar muita atenção a este desdobramento, deixando-o mais como uma conclusão a cargo do telespectador do que como uma hipótese a ser trabalhada pelo filme. Mas não foi ruim, já que o foco do trabalho é sempre explicar a organização do estilo musical. Investir em argumentos sociológicos e acadêmicos, embora pudesse ser enriquecedor, não fez falta.
Mas fez falta mostrar mais o lado negativo da pirataria. Aliás, uma dúvida: pode ser considerado pirataria se não se registra os direitos autorais e o próprio autor distribui o trabalho sem se preocupar com os lucros pelas reprodução da música? Por exemplo, a banda baiana Djavú faz sucesso regravando músicas sem registro legal do tecnomelody paraense, enquanto os autores não ganham nada com isso. Onde a lei autoral pode ajudar? Ou tudo se resume a uma questão de (falta de) ética? Mostrar a violência da polícia enfrentando os camelôs não é suficiente para ilustrar os problemas da pirataria, principalmente porque os policiais, justos ou não, estão amparados pela lei. O comércio ilegal faz mais do que fomentar o acesso das classes mais pobres à músicas e filmes piratas. Os camelôs expõem suas justificativas, o outro lado poderia ter a chance de fazer o mesmo.
Porém, se for confirmado, uma versão estendida anunciada estará disponível para download no site da produtora Greenvision. Talvez dê mais atenção ao aspecto ruim da pirataria. Se não der, contudo, o resultado já visto vale de qualquer jeito, principalmente ao se levar em conta que os diretores pagaram tudo do próprio bolso e amargaram boas dificuldades financeiras, já que nenhuma empresa local se interessou em bancar um projeto sobre tecnobrega. É de pensar se consideraram um trabalho sobre "lixo musical", desconhecendo ou fechando os olhos para todas as questões importantes que permeiam tal manifestação. Nestes casos, é sempre bom lembrar: não se trata apenas de juízo de valor artístico ou cultural. Trata-se de fatos interligados ao cotidiano de uma cidade e, por isso, pode afetar a muitos, fãs de tecnobrega ou não.
3 comentários:
excelente texto, mas não me surpreende muito a mesma comparação com o funk carioca, é fato que a situação social do Brasil é desigual, dai surgem esses 'lixos'[creio que não devo ser tão radical assim]como válvula de escape.Como paraense, entendo o brega, tecno-brega como uma indústria da massa que pode vir a aumentar a circulação de dinheiro para populações mais carentes.
Quanto ao documentário, vou lá conferir ;)
Flores.
[ahh, minha angústia é diária]
Fantástico o trailer e muito legal a proposta de discussão suscitada pelo documentário. Acho que as pessoas tendem a ser críticas demais com a questão das mídias piratas, mas é fato que a pirataria é uma forma de democratizar o acesso das classes pobres aos produtos da indústria cultural... Verdade que a maioria dos produtos da indústria cultural nem valem a pena do ponto de vista intelectual, mas na inexistência de políticas públicas que garantam diversão gratuita e de qualidade a um segmento social que não é educado para valorizar música erudita, por exemplo, o jeito é cair no tecnobrega... É pura catarse!!
Que legal esse documentário!
Eu tenho cada vez menos simpatia pelo discurso eruditista que condena determinadas expressões musicais, pela pura necessidade de demonstrar uma credencial de gosto refinado. O detalhe da manifestação musical refletir "o contexto onde surgiu, implicações da época e de um cenário maior", pra mim, faz toda a diferença. Aceitando ou não, trata-se da expressão da leitura de mundo, das características específicias, dos traços simbólicos, de uma comunidade. Eu tendo a ver as classificações de "grotesco, cafona, bizarro, brega", como construções sociais, repletas de estratégias discursivas, que visam adotar uma representação que será melhor aceita pelos meus pares. Resumindo: falo mal do brega pra ficar bem na foto! Em determinados meios, é o que as pessoas esperam ouvir. É o intelectualmente correto. Mas, ao condenarmos o brega (no sentido mais amplo, não apenas o paraense), o que entra no lugar? Cria-se um vazio semântico, que ninguém dá conta de preencher. É muita espuma, pra pouco conteúdo.
Postar um comentário