Início, meio e fim

Quando se imagina os motivos para se admirar o Batman, um dos mais recorrentes é o fato dele não ter super-poderes e, ainda assim, fazer frente a alguém como o Superman. Um humano em pé de igualdade ou até superando uma criatura de status divino. Treino duro, vários apetrechos úteis e um uniforme feito para provocar medo. Uma fantasia mais plausível, por assim dizer. Conforme se avança nas leituras de Batman, porém, uma outra razão começa a pautar a relação com o personagem: as consequências de uma tragédia e um trauma não superados. Parte de Bruce Wayne morreu ainda criança ao assistir seus pais serem mortos durante um assalto. Quando compreendeu o que queria fazer (ou "o que deveria ser feito") quanto a isso, começou a moldar a figura do morcego. Porém, logo se vê que aterrorizar bandidos não implica necessariamente em acabar com o mal. Então se percebe, nem sempre de maneira muito clara, a diferença entre uma figura justiceira e uma figura heróica: o sacrifício em nome de um bem maior. 

Esta foi uma questão recorrente quando fazia o meu TCC na graduação. Para definir o Batman como um super-herói, era necessário entender antes o que um herói representava. Termo derivado do grego antigo, herói significa um homem com qualidades excepcionais ou ainda autor de grandes façanhas. Interessante observar que, na mitologia grega, muitos heróis eram semideuses e seus grandes feitos contavam com a origem ou proteção divina. Algo além do alcance unicamente do homem, alguém capaz de superar desafios de dimensões épicas. Seria uma interpretação do que concebemos como super-herói atualmente. No dicionário, herói também pode ser compreendido como alguém que tem qualidades nobres ou morais muito positivas. Justamente esse ponto que torna a figura do herói tão prezada por nós. Do bombeiro que se arrisca para salvar vidas em um incêndio até a mãe que trabalha diariamente para garantir o sustento e a educação dos filhos. Dedicação e sacrifício. Isso leva a questionamentos interessantes. Por exemplo, entre uma pessoa normal e outra que é invulnerável a fogo e calor extremo, quem seria mais heróica ao entrar numa casa em chamas para resgatar uma criança? Pensando dessa forma, há muitos heróis na vida cotidiana, lutando por um conceito moral elevado e/ou por alguém. Apenas não chamam a atenção aos encararem seus desafios de cada dia. 

A partir desta perspectiva do que é considerado um herói atualmente, consideramos no TCC que um super-herói é um herói com habilidades sobre-humanas. Batman não tem superpoderes, mas se apresenta como um ser fantástico. Capaz de voar, de derrubar vários homens de uma vez, invulnerável a balas, etc. Porém, mais do que se apresentar como um super-herói, o objetivo de Bruce Wayne era provocar medo nos criminosos. Uma questão que foi perfeitamente compreendida pelos filmes de Christopher Nolan. Batman é um símbolo de justiça aos cidadãos de bem e de terror aos malfeitores. Este é o ponto-chave: um símbolo, algo imaterial, que pode ser adotado por qualquer um que se disponha a acatar seus valores. Incluindo dedicação e o sacrifício.



Em Batman Begins, Bruce Wayne apresenta a Gotham City um símbolo de justiça, construído para combater a decadência da cidade, mesmo que para isso tenha que ir contra suas próprias leis. Em The Dark Knight, Batman percebe que inspirou não somente a luta contra o crime (fato já problemático, pois combater o crime tinha diferentes interpretações para um promotor e para vigilantes armados), mas também pressionou os bandidos a tal ponto de recorrem ao Coringa, uma figura maléfica que ninguém compreende e nem faz questão de ser compreendida, exceto num ponto: quando o caos se instala, todos mostram suas verdadeiras faces e nenhuma delas é bonita de se ver. Tornou-se o exato oposto de Batman que, pela primeira vez, teve noção dos imensos sacrifícios que representava vestir aquela máscara. E que nem sempre o herói que se quer é o mesmo herói que se necessita.

The Dark Knight Rises é o fim do Batman de Christopher Nolan. O que deveria ser o melhor capítulo saiu como inferior aos filmes antecessores. Mas não um filme ruim. Pelo contrário. Há falhas: diálogos ruins ("O Programa Ficha Limpa que faz isso e aquilo e é bom demais pra ser verdade?" "Você é a maldade em pessoa!" "Veja como ele luta, é a Liga das Sombras de volta!"), o fato de uma criança ter descoberto que Wayne é o Batman só de olhar o sorriso ensaiado dele, a personagem Selina Kyle que sensualiza de graça e à toa e parece deslocada com o perigo iminente (o beijo final antes da bomba explodir), algumas dúvidas de roteiro (O prisioneiro alquebrado aprendeu inglês só para dar a dica ao Wayne como escapar do poço? Como Bruce Wayne chegou até Gotham sem dinheiro e como ele entrou na cidade se ela estava vigiada pelo exército? Por que a Miranda/Talia teve que encarar perseguição e tiroteio e até a morte para inundar o reator que desativaria a bomba se ela podia fazer isso muito antes?). Mas a história é muito consistente com o que Nolan mostrou até agora. E isso, no fim, é o que mais importa.


Batman assumiu a culpa por crimes que não cometeu para que, assim, Gotham reagisse ao crime. Funcionou, mas com um preço: Batman não só não é mais necessário como também é odiado pela cidade. E isso é bom, pois o herói representa justamente o perigo que Gotham não consegue combater, ou seja, uma ineficiência da cidade e seus cidadãos. Bruce Wayne aceita o fato, mas não consegue mais viver apenas como bilionário excêntrico, já que este era apenas um disfarce (ressaltado pela cena do baile de máscaras, onde, assim como em Batman Returns de Tim Burton, Bruce aparece de rosto limpo). Tal letargia leva a um dos grandes momentos do filme: Alfred revelando que jamais quis que o patrão voltasse para a cidade porque sabia que significaria que o trauma da morte dos pais assumiu proporções inesperadas e Bruce não conseguiu seguir com a sua vida. Quando Bruce Wayne percebe que Bane pode fazer Batman voltar à ativa, Alfred mostra mais uma vez o quanto é um caminho perigoso e, reconhecendo que aquele trauma jamais seria superado, a preocupação imediata é que ele não morra nas ruas. Para isso, sacrifica a confiança e amizade deles para revelar a verdade sobre Rachel Dawes.  

As cenas com Alfred mostram que Batman não tem apenas mortalidade e falhas de julgamento como características humanas. Suas escolhas, ainda que mirem o bem-estar da população, perturbam profundamente aqueles com quem mantém laços afetivos. O choro de Alfred é uma ilustração de como Batman representa a infelicidade e a nobreza de Bruce Wayne e, sendo a figura paterna dele, ele sinceramente preferiria que o filho fosse feliz. 


Assim como Alfred vislumbrou a natureza caótica do Coringa em The Dark Knight, nesta continuação ele mais uma vez ressalta o perigo que Bane representa: o mal aliado à força de vontade inquebrável. Assim como Batman, Bane também inspira seguidores e consegue calculadamente induzir seus algozes ao terror. Em determinado momento, ele diz "Ninguém se importava com quem eu era, até eu colocar a máscara". Além disso, é capaz de vencer o herói em seu próprio jogo, "você apenas adotou a escuridão. Eu nasci nela, fui moldado por ela" (interessante ver que neste filme Batman aparece pela primeira vez durante o dia, justamente quando ele derrota seu inimigo). Ou seja, Bane é a prova final de Batman: ele é quem provocará mais dor ao seu corpo e ao espírito, quem obstinadamente causará mais angústia a ponto de dar esperanças ao povo de Gotham apenas para aumentar o sofrimento final.  Bane derrotará Batman ou fará ele voltar mais decidido do que nunca a proteger Gotham City.


A partir deste ponto, Batman percebe que era preciso mais do que sacrificar a própria vida pela sua cidade. Era necessário um herói que a motivasse, assim como Harvey Dent o foi. Contudo, se Dent foi uma pessoa de carne e osso, Wayne criou Batman para ser um símbolo que sempre pode ser utilizado (como o bat-sinal restaurado para a surpresa do comissário Gordon). Se a morte de Dent foi confirmada, a de Batman ninguém pode provar. Assim é aberto o caminho para a figura não muito sutil de John Blake/Robin continuar com o legado do Cavaleiro das Trevas. 

Por isso eu enxergo o capítulo final da trilogia como um desfecho satisfatório para a versão de Christopher Nolan. Nas duas vezes que Gotham correu risco de ser exterminada, Batman apareceu, vindo de fora, tendo que superar uma limitação própria (medo para Begins e dor para TDKR, segundo Nolan) para socorrer a cidade. Retomou a ideia de uma figura ou símbolo capaz de inspirar outros a combaterem o que acham injusto. E, por fim, mostrou que ser herói exige sacrifícios. Da própria felicidade, de amigos, de amores, da vida. Por esta razão não gostei da cena onde Bruce e Selina aparecem para Alfred no restaurante. É reconfortante saber que Bruce Wayne sobreviveu, mas já havia outros indícios: o bat-sinal restaurado, o colar desaparecido, o piloto automático do veículo voador. Ver o casal naquele restaurante serviu para mostrar que finalmente Bruce desistiu de ser Batman. Apenas pra isso. Seria muito mais interessante se mostrasse apenas a expressão de Alfred, o olhar surpreso e um esboço de sorriso. Não mostrar a superação de Bruce Wayne, apenas sugestioná-la, seria mais eficiente com a ideia de que ninguém passa incólume pelo manto do Cavaleiro das Trevas. Ou pelo rito de um herói.



Um comentário:

Márcio Sallem disse...

Parabéns, além de escrever uma crônica fluida e agradável também ressaltou pontos que passaram desapercebidos (realmente, o Batman apenas aparece de dia neste filme) e conseguiu fazer valer seu argumento sem enfraquecê-lo. Passo aqui nas próximas postagens.

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