Violência gratuita

Um dos traços mais marcantes do Coringa de O Cavaleiro das Trevas e do Chigurh de Onde os Fracos Não Têm Vez é não apresentar razões para a sua crueldade. Não era cobiça, desejo de vingança ou traumas psicológicos. Surgem como o Mal absoluto, sem origens ou explicações para suas atitudes. E apenas por demonstrarem o desejo (ou a indiferença, no caso de Chigurh) de "ver o mundo pegar fogo", impossibilitando qualquer tentativa de compreender tal crueldade, eles se tornam ainda mais perigosos, porque se tornam imprevisíveis.



Mas, diante de qualquer personagem carismático (especialmente os vilões), há uma considerável chance de frustração em conhecer suas origens. Hannibal Lecter, de O Silêncio do Inocentes intrigava por ter sido um psquiatra renomado, médico erudito, gosto refinando, perfeito cavalheiro. No entanto, matava pessoas e comia partes de seus corpos. Sem aparentes justificativas para seu comportamento, restava uma hipótese: a escolha consciente pelo mal, o que era mais assustador. Mas com o lançamento de Hannibal - A Origem do Mal, descobrimos que tudo é resultado do trauma de ter visto sua irmã caçula devorada por soldados nazistas. Não ignorando a tragédia do fato, mas imaginar a maldade de Lecter como uma opção, e não uma consequência, era melhor. O desconhecimento sempre tem o poder de assutar.


No caso de Michael Myers, assassino slasher da série Halloween de 1978, a intenção dos criadores possivelmente foi mostrar um ser de absoluta crueldade incompreensível. Mas o fato de Myers matar preferencialmente moças e rapazes com vida sexual ativa e consumidores de drogas lícitas e ilícitas permitia interpretar a violência como uma espécie de punição social (como pensa John Doe, de Se7en) ou como uma catarse provocada pela admiração mórbida que cada um de nós porventura tenha (chegando ao nível do sadismo de filmes como Jogos Mortais e Albergue). Contudo, o diretor John Carpenter sempre disse que o objetivo era simplesmente assustar. E o fato do vilão não ter motivos para a matança e ser virtualmente indestrutível contribuía para tanto. No remake de 2007, dirigido por Rob Zombie, o menino Myers é maltratado pelo padrasto desempregado, pela irmã promíscua e pelos colegas na escola que vivem lembrando que sua mãe é uma stripper. Desta vez há motivos que possam justificar sua violência, o que quebra um pouco a aura maligna pretendida no original de 1978 e foi o principal alvo de críticas ao filme. Ainda assim, não deixa de impressionar ver o garoto comer e brincar com doces na noite de Dia das Bruxas e, logo em seguida, iniciar um banho de sangue.


Violência nos filmes sempre tem lugar no entretenimento. Mas ainda há obras que procuram mostrar que machucar e matar, para algumas pessoas, é um ato divertido ou, no mínimo, desprovido de qualque gravidade (Laranja Mecânica e Assassinos por Natureza). Ou ainda uma bola de neve que pode crescer a ponto de destruir todos os envolvidos e não-envolvidos (Tropa de Elite). Mas a violência como um fim em si mesma incomoda, não apenas por nos fazer reconhecer que possuímos instintos violentos e curiosidades mórbidas (como explica a rápida disseminação de spams que dizem ter imagens de acidentes como o do avião da Air France), mas também por lembrar que existe violência sem explicação, origem ou entendimento. E que os filmes divertem, mas os melhores lembram que a realidade pode ser pior.

2 comentários:

Anônimo disse...

Definitivamente, a realidade é pior. No entanto, o entreterimento existe justamente porque as pessoas não querem se lembrar disso. Como sempre, é muito mais fácil ignorar do que mudar.

Repórter de Sandálias disse...

Acho que se divertir com violência é uma forma de evidenciar e comprovar que todo ser humano tem um lado selvagem. A civilização nos forçou a domar nosso lado do mal, mas os "instintos" e as "curiosidades mórbidas" estão aí justamente para fazê-lo aflorar de vez em quando... É a única razão para gastarmos voluntariamente uns R$ 15, que é mais ou menos o valor de um ingresso de cinema, ou duas preciosas horas de nosso tempo com filmes violentos e depois ainda os classificarmos como arte!! Vai entender a natureza humana, rsrsrs!!

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