Ego e estilo

"'O que você é?' Foi isto que aquela mulher me perguntou. Sou algum tipo de fantasma? Eu ainda me mexo. Ainda respiro. Ainda estou vivo." Esta é uma das falas em off do protagonista do filme The Spirit. Lendo tal frase como exemplo, quem gosta dos quadrinhos do personagem faz uma ideia ruim sobre sua adaptação para as telas. Spirit não é um fantasma e não tem dúvida alguma sobre sua natureza mortal (ainda mais por ser um detetive constantemente envolvido em brigas e tiroteios); raramente faz perguntas a si mesmo sobre outra coisa além do seu trabalho; não demonstra um raciocínio filosófico e melancólico como faz crer a frase acima. E os mais aborrecidos farão a advertência de que leitores não têm acesso aos pensamentos íntimos do detetive: poucas vezes um personagem da série faz uma narração em off da história apresentada, e Spirit não está entre eles.

Narração em off é um recurso comum em filmes noir, gênero do qual o quadrinhista Frank Miller é fã (Sin City é a melhor prova de sua admiração). Quase todos os seus trabalhos trazem este tipo de narração. É um meio de se conhecer melhor o personagem e de se identificar com ele. Muito comum em quadrinhos. Mas, no filme The Spirit, soa como preguiça e exercício estilístico de Miller. O resultado é ainda pior quando o próprio afirmou várias vezes que estava sendo fiel ao estilo de Will Eisner, criador do personagem. Não foi. O estilo de Eisner nas histórias de The Spirit foi influenciado pela fotografia dos filmes noir da época. Miller foi "influenciado" pelo visual de Sin City, de sua própria autoria.

Por outro lado, quando se observa o tom pastelão do filme, é possível argumentar que Miller fez um deboche da atmosfera pesada do cinema noir, já que o personagem não se leva muito a sério ainda nos quadrinhos. Se esta foi mesmo a intenção do diretor, novamente se revela um recurso pouco imaginativo: Miller foi "acusado" de fazer a mesma coisa com o personagem Batman em alguns quadrinhos (como na série Batman All Star), exagerando na composição violenta e fascista que ele próprio definiu para o herói na hq O Cavaleiro das Trevas. Aliás, o sentimento de proteção que Spirit nutre por Central City no filme tem ecos da visão de Batman sobre Gotham... E Miller ainda disse em entrevistas que "não gosta de mesmice".

The Spirit transparece ser mais uma manifestação de estilo (e ego) de Frank Miller do que uma homenagem às histórias de Will Eisner. E isto leva à questão em saber até que ponto um autor pode querer desenvolver suas próprias características sem sabotar a criatividade no trabalho. A mão de Tim Burton, por exemplo, pode ser sentida em quase todos os seus filmes, o que não o impede de dirigir obras diversas como o remake de O Planeta dos Macacos ou de A Fantástica Fábrica de Chocolate. Já M. Night Shyamalan desenvolveu um certo estilo de criar suspense, mas a insistência em bater na mesma tecla do mesmo jeito levou-o a resultados cada vez piores desde O Sexto Sentido e Corpo Fechado. Estabelecer uma identidade profissional é importante, mas nem sempre é preciso pagar o preço de limitar a criatividade e deixar de surpreender o espectador. 

Claro que sempre haverá casos em que o público deseja ver exatamente o previsto, como as referências de cultura pop de Tarantino ou a forte presença feminina nos dramas de Pedro Almodóvar. São temas onde o autor demonstra talento para desenvolvê-los e, portanto, nada mais natural que se queira ver mais do seu trabalho a partir daquela perspectiva. Mas, Hitchcocks à parte, o melhor é mesmo ter versatilidade sem perder estilo. E uma das melhores coisas que a consagração pública oferece é justamente uma liberdade maior de inovar, de experimentar novos gêneros e métodos aprendidos ao longo da carreira. Todo artista deveria ter isto em mente, em vez de ficar requentando velhas fórmulas por comodismo, convencimento ou medo de ser rejeitado.

Um comentário:

CrápulaMor disse...

Muito bem escrita sua crítica, parabéns! Apesar dos problemas que você apontou, fiquei com vontade de ver o filme! haha Parece interessante! E, lendo o seu texto, dá vontade de exercer o nosso próprio olhar crítico diante do Cinema. Coisa que eu nunca fiz direito...

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