Metade do real

Fui buscar o resultado de um exame médico. Sempre há filas na porta do elevador. Como ninguém gosta de filas e não era num andar muito alto, fui pelas escadas. No último lance de degraus para chegar ao terceiro andar, um moeda vem caindo na minha direção. Atrás dela, um garoto de uniforme escolar, braço estendido e palma aberta mirando o dinheiro em queda, talvez uns dez anos de idade. Pisei na moeda para evitar que ela descesse ainda mais. Mas antes de notar a moeda ou o garoto, eu já estava fazendo o movimento de pisar no próximo degrau. Para pegar a moeda a tempo, o pé foi mais rápido. Acabei pisando com força. Fez barulho.

O garoto parou. Afastei o pé da moeda e dei espaço para ele. Ele não se mexeu e olhava para mim. Mesmo uns três degraus acima, ainda ficava um pouco abaixo da linha dos meus olhos. Olhei para a moeda, depois para o garoto, novamente para a moeda e me indaguei o que diabos ele esperava. Avancei mais um degrau para chegar ao meu destino. Ele se afastou e então percebi que estava assustado. Tato típico com crianças. Senti-me ridículo. Também achei o garoto ridículo por julgar que eu iria querer o dinheiro. Mas ele estava tenso. E, ridículo ou não, era uma criança assustada. O que eu poderia alegar?

Ajoelhei-me, peguei os cinquenta centavos e estendi a mão. Olhou para a moeda, depois olhou pra mim, mais uma vez pra moeda e então a pegou. Continuei a subir. Dobrei para subir o próximo lance e então percebi que ele desceu alguns degraus e parou. Quando me viu olhar em sua direção, esticou totalmente o braço, levantou o polegar e fez o sinal de positivo, joia. Depois continuou a descer. E eu fiquei parado. Um daqueles momentos pra tentar racionalizar a situação. Depois de racionalizar, filosofar a respeito. Não é de propósito, apenas acontece. Então parei e voltei a subir, lembrando das vezes em que fui alertado sobre "pensar demais". Era um garoto que se espantou com um pisão repentino no seu dinheiro. O que o universo tem a ver com isso? Não é uma tentativa de entender inteiramente a realidade do mundo, não é uma metáfora sobre as descobertas na infância, não é uma crítica velada ao desejo por dinheiro, não é um objeto de estudo antropológico sobre a disputa territorial humana.

Porque ainda há fatos que não merecem explicação por serem óbvios. E isto já é um fato óbvio. Mas, se escrever sobre isso já implica enxergar além da obviedade da afirmação e do ocorrido, o que fazer? Não sei. Nem me incomodo no momento. Às vezes é bom sentir a tranquilidade de correr só atrás do imediato. Só às vezes...

3 comentários:

CrápulaMor disse...

Enxergando além da obviedade do ocorrido ou não, adorei o relato! Muito bunitinho o jeito do garoto! hehehe Às vezes não é tão fácil lidar com criança, são muito espontâneas. Boa crônica!

Anônimo disse...

'espontâneas' não deixa de ser um adjetivo interessante. Pero...cabaço e ingenuidade são coisas impossíveis de se recuperar depois de perdê-las.
Bjo,
Luana

L disse...

A criança deve ter pensado:

"Elevaimematar,Elevaimematar,Elevaimematar,Elevaimematar,"

Se ela tivesse visto o vídeo do God of War, então ela teria chorado...

:D

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