Sessão dupla

Nota: o texto abaixo deveria ter sido postado há alguns dias, aproveitando a sessão de cinema recente. Mas houve pouco tempo e muito cansaço, quase deixei pra lá. Por fim, insisti. Se continuar a leitura, aviso de spoilers. Assista aos filmes destacados antes.

Medo, possivelmente, é o sentimento que mais afeta a nossa percepção da realidade. O estado de tensão e alerta, preparado para fugir ou lutar, aumenta as dimensões do que pode ser uma ameaça desconhecida. Um ruído provocado pelo vento, uma iluminação fraca ou um vulto estranho deixam de ser apenas incômodos fatos provocados pelo acaso e passam a representar perigo real. É uma das estratégias do corpo para a sobrevivência da raça humana e que bons filmes de suspense e terror sabem provocar, principalmente quando despertam curiosidade ao mesmo tempo, fazendo a sugestão da ameaça assustar mais que a sua exposição.

Se medo pode ser tratado como uma reação imediata do organismo à presença de riscos iminentes, o trauma é resultado de uma experiência agressiva cujos efeitos são sentidos a longo prazo. Ao contrário do medo, que geralmente tem a sua origem logo identificada, o trauma geralmente exige mais tempo para reconhecer não somente a sua causa, mas também os seus efeitos. Tratamento médico é recomendável para a recuperação, principalmente se for necessário analisar os próprios sentimentos e lembranças em busca de respostas. Não é uma ciência exata; os métodos, assim como as reações a cada um deles, são variados.

Parece desnecessário relembrar de como medo e traumas podem afetar tanto a mente e o subconsciente do ser humano. Todos conhecem casos e exemplos disso. Mas recordar o óbvio vale aqui por dois motivos. Primeiro: evidências claras à primeira vista podem se revelar mais complexas ao se considerar outras perspectivas, especialmente quando se trata do subconsciente do indivíduo; o que é óbvio pode ser assim definido mais pelo conceito enraizado na mente do que pelo exame do contexto em que se apresenta. Segundo: provavelmente, o ator Leonardo DiCaprio levou em conta tais constatações ao decidir protagonizar seus dois filmes lançados este ano, Ilha do Medo e A Origem (Inception). Um bom ponto de partida para analisar e comparar as duas obras

Ilha do Medo é baseado no livro de Dennis Lehane (Paciente 67), dirigido por Martin Scorsese e narra a investigação de dois policiais sobre o desaparecimento de um paciente no hospital psquiátrico na Ilha Shutter. Alguns questionamentos surgem, segredos são descobertos e, por fim, chega-se ao ponto em que nada ali aparenta ser o que realmente é. Inception foi dirigido por Christopher Nolan, com roteiro original do próprio diretor. Uma equipe de ladrões especializada em roubar ideias durante o sonho das pessoas, quando a mente está mais vulnerável, recebe como missão realizar o oposto do que geralmente fazem: ao invés da extração, devem inserir um pensamento na mente do alvo. Cada um dos filmes, agarrado ao seu respectivo gênero principal (terror e ficção científica) e ainda alcançando outros, fala sobre como a mente humana pode ser influenciada pelo medo e desespero da realidade, chegando ao trauma e, por fim, ao colapso, transformando a veracidade dos fatos na verdade mais conveniente para a sobrevivência psicológica. Melhor antes ver a especialidade de cada trabalho.

Martin Scorsese e Leonardo DiCaprio são parceiros de cinema há 8 anos e quatro filmes. Durante este tempo, fizeram um drama (Gangues de Nova York, 2002), uma cinebiografia (O Aviador, 2004), um remake de um policial chinês (Os Infiltrados, 2006) e o suspense/terror Ilha do Medo. Enredos variados, papéis versáteis. De certa forma, é difícil encontrar uma assinatura-chave de Scorsese na direção dos quatro filmes, mas há estilo, sem dúvida. Um exemplo do seu cuidado na construção tanto imagética quanto na significação das cenas é o momento em que o protagonista de O Aviador se encontra dentro de um banheiro, onde é possível perceber - através das diferenças nas cores da roupa do ator em relação ao ambiente, na postura defensiva dele e na disposição de elementos do cenário - o desconforto do personagem.


Ou ainda ao mostrar como dois detetives são vistos com desconfiança ao chegarem no hospital psquiátrico. O enquadramento a partir da perspectiva do guarda (que aparenta ser mais alto do que é), vendo os dois visitantes cercados por outros seguranças de braços cruazados, um veículo atrás e os muros laterais, é capaz de transmitir simultaneamente a ideia de estarem em um local protegido, perigoso e, justamente por isso, estranhos não são bem-vindos. Mais à frente no filme, em uma breve passagem, ficam evidentes a distância e a dificuldade de acesso que dois homens verificam ao visualizar um farol, servindo como prenúncio das dificuldades que enfrentarão para chegar lá .



Scorsese tem uma extensa carreira onde produziu obras de diferentes valências e analisar Ilha do Medo a partir dos vários filmes que o diretor realizou não é o caminho mais indicado. Mas Nolan é diferente: rodou seu primeiro longa-metragem em 1998, Following, e desde então seus filmes têm características cada vez mais definidas, principalmente nos seus enredos. Como diz o artigo de Tom Elrod, respondendo aos murmúrios de comparação de Nolan com Stanley Kubrick, "os filmes de Kubrick (...) eram estudos de personagens. Os filmes de Nolan, por contraste, são estudos de trama. Na verdade, você poderia dizer que ele é um artista da trama". De fato, dos seus sete filmes até agora, quase todos trazem enredos que se tornam cada vez mais complexos conforme avançam. Mas isso, não significa, obviamente, que os personagens de Nolan são inócuos. Pelo contrário, suas motivações são críveis (neste aspecto , seus melhores personagens foram Leonard, de Amnésia, e o Coringa, ironicamente plausível justamente por não apresentar nenhuma razão específica para suas atitudes, o caos pelo caos; mas também foi ele, ironicamente ou não, quem conseguiu realizar seus planos na ordem que estabeleu).

Mas não há como negar que Nolan se destaca mesmo na construção dos seus enredos, inclusive usando a montagem cinematográfica para auxiliar na complexidade das suas histórias. Alguns de seus filmes, por exemplo, começam com um cena que ocorrerá posteriormente na cronologia da narrativa e, depois, corta para contar os acontecimentos na ordem em que aconteceram, passando pela cena inicial até chegar ao fim. Também é comum o uso de flashbacks (inclusive chega a ser repetitivo). Mas, verdade seja dita, ele conseguiu justificar o recurso da montagem fílmica de maneira orgânica no tempo reverso de Amnésia ou nos diferentes níveis de duração de Inception, além do argumento do ilusionismo como uma analogia à própria ilusão cinematográfica em O Grande Truque. Impressionante.

Também na maioria dos seus filmes Nolan trabalhou com seu irmão, Jonanthan, para escrever o argumento da história. É evidente que os irmãos preferem um estilo sóbrio, urbano e focado no trauma e obsessão de seus personagens (não à toa que encontraram o seu ideal em Batman). Mas, em Inception, Christopher Nolan trabalhou sem o auxílio do irmão no desenvolvimento do enredo e, coincidência ou mais que isso, foi possível notar um certo enrijecimento de seus traços (até a arte do pôster do filme é semelhante ao de The Dark Knight, como foi bastante divulgado na internet). A cena inicial que depois será compreendida, os flashbacks, as constantes explicações das ações dos personagens, o final seco e ambíguo, entre outros fatores.


Outra característica comum dos filmes de Nolan é mostrar a perda da mulher amada como causa da aparição, ou pelo menos do reconhecimento, das perturbações de seus personagens (e, consequentemente, engatando a trama do filme). O assassinato da esposa de Leonard em Amnésia, o acidente com a namorada do mágico em O Grande Truque, a morte da noiva de Harvey Dent/ Duas Caras em The Dark Knight e, agora, o suicídio da esposa de Cobb em Inception. E este é o ponto que remete diretamente a Ilha do Medo: a morte da esposa e o complexo de culpa, resultando na fragmentação da mente e na instabilidade do subconsciente. Desta forma, aquilo que se vê pode não ser real, mas apenas uma reação psicológica/emocional ao trauma. Mas em Ilha do Medo, este é o efeito da loucura e terror, enquanto em Inception é resultado da navegação em sonhos e seus limites com a realidade.

Scorsese desde o início estabelece um clima sobrenatural no filme, com seu protagonista sempre em busca de respostas e descobrindo pessoas e lugares cada vez mais assustadores ao passar da conspiração à paranóia e, finalmente, à verdade final. É curioso notar que, se Scorsese aproveita o cenário mental de um único personagem para construir belas cenas que claramente não correspondem à nossa dimensão, Nolan usa o mundo dos sonhos da humanidade para estabelecer a maior semelhança possível com o ambiente real. Talvez Nolan não se sinta à vontade para construir cenas que saltem demais aos olhos do espectador, todas têm o claro propósito de explicar ou refletir a trama, como se a "liberdade artística" de cenas como o Coringa na janela do carro policial em The Dark Knight não fossem o seu forte. Nolan dedica tanta atenção ao aspecto realista de suas histórias que a principal característica do mundo dos sonhos é ser influenciado pela realidade e, portanto, deve ser como ela, já que isso é importante para o trabalho dos personagens. Até quando o subconsciente é treinado para se defender, ele o faz utilizando tecnologia e táticas militares, exatamente como seria no mundo real. Mas, claro, Nolan não deu ponto sem nó: a função de Arquiteto explica o aspecto não-onírico dos sonhos.

Repassando todos esses pontos, é de perguntar se o ator Leonardo DiCaprio, após ler os roteiros de ambos os filmes, teve um interesse especial na figura do homem e sua experiência traumática sendo refletida na mente e nos sonhos, com provocações no medo e no subconsciente, a ponto deles serem mais importantes para a história do que o mundo real (principalmente porque nem sempre se sabe o que de fato é real). Ou então como delírios dentro de delírios e sonhos dentro de sonhos puderam ser explorados, cada um ao seu modo, em um filme de suspense e outro de ficção científica, ambos com fortes tons dramáticos (como era de esperar ao se tratar de medos e traumas, afinal). Para o espectador, não deixa de ser interessante ver como histórias tão distintas na maneira de serem contadas apresentam fortes ligações, além do mesmo ator principal: as reações diante do medo e após o trauma. Quanto mais profundos, mais inesperadas podem ser as respostas. Basta lembrar o final de cada filme.

2 comentários:

Repórter de Sandálias disse...

Olha, que legal! Me senti na minha aula de mestrado lendo esse texto. To fazendo uma disciplina sobre Estudos da Violência em Narrativas Contemporâneas, rsrsrs, acredita!! A Ilha do Medo ta previsto pra exibição no programa, rsrsr. Agora fiquei ainda mais ansiosa para assistir. E é verdade que o Di Caprio ta cada vez mais versátil, rsrs!! :)
Bjs

thiago hakai-so disse...

Ótima análise! A forma precisa que tu usas pra escrever e o método que tu usas na análise é excepcional. Muito bom.
Assiti ontem mesmo uma entrevista do Nolan sobre o filme e em relação a cena final ele diz que o principal objetivo com a cena foi mostrar como a necessidade de superar a dor era mais importante do que a realidade ou a fantasia.
No final, creio que essa é a grande mensagem, a resposta em relação ao trauma. Em ambos a resposta em parece semelhante.

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