Quando não se pode esquecer

Perto do fim do ano passado, enquanto aguardava o lançamento de Avatar, escrevi sobre como o ano de 1999 foi fértil em produções memoráveis, potenciais cult movies. Clube da Luta, Matrix e A Bruxa de Blair são os principais títulos. Já em 2000, muitos filmes vieram com a ideia de renovação ou modernidade para aproveitar a iminência da nova década e do novo milênio. Começava a temporada de adaptações e remakes, tão valorizada até hoje. O Playstation 2 foi lançado e a safra de jogos para o novo console foi se tornando um campo de ideias para novos filmes.  Terrores adolescentes como Pânico e Lenda Urbana já estavam sofrendo desgaste. E, mesmo longe de ser tão rico como o ano anterior, 2000 trouxe algumas obras memoráveis. Algumas delas servirão de pauta aqui, tanto por nostalgia como para ocasionalmente espantar as moscas do blog.

Das obras memoráveis do ano 2000, possivelmente Amnésia é a melhor delas. Não entendi completamente o filme na primeira vez em que assisti, consegui compreender na segunda tentativa, vi outras vezes para enxergar as pistas do roteiro e as sessões seguintes foram apenas para apreciação, ainda mais depois de visitar o site do filme. A tradução do título é enganosa. Apesar do protagonista, Leonard Shelby, esquecer das coisas, a doença dele é um tipo específico de amnésia, a anterógrada. Ele não consegue formar novas memórias a partir do trauma que causou a sua condição, apesar de se lembrar de toda a sua vida antes do ocorrido. Ele consegue compreender uma situação por apenas alguns minutos, depois esquece. Para dar alguma organização a sua vida, ele registra fatos e confere tarefas a si mesmo através de recados e fotografias. É este o sentido do título original: Memento é uma palavra latina que significa "lembra-te" e também tem o sentido de anotações, lembretes ou qualquer coisa que sirva para lembrar de alguma questão. É o resumo não apenas do dia-a-dia de Leonard, mas do seu propósito de justiça.



A estrutura de cronologia reversa do filme serve justamente para situar o espectador na condição de Leonard, em não saber como aquela cena ou situação teve início. Mas, conforme o filme avança (ou retrocede, no universo da história), passamos a entender o significado das fotografias e anotações de Leonard. A diferença é que podemos concluir se uma pista pode ser falsa ou não apenas pela memória e dedução, enquanto o personagem não pode contar com a primeira e mal pode confiar na segunda, já que ela depende justamente dos lembretes que escreve a si mesmo e nem sempre podem corresponder à verdade. E assim, conforme Leonard entende (ou julga entender) a sua trajetória, a expectativa de uma solução aumenta. E o que se encontra é uma resposta ambígua.

 

É quando a condição de Leonard  vai além de proporcionar uma ótima base para o suspense e toca numa questão mais profunda. O que Leonard busca é mais do que justiça, é um sentido para a sua vida. Se acordar todo dia sem saber onde se encontra já pode ser desesperador, imagina descobrir de novo e de novo possíveis destinos trágicos de entes queridos. E, por mais que seja forte o laço afetivo, ele depende tanto da memória como de instinto amoroso para se manter, talvez até mais. Como "saber" o que sentir se não se sabe o que aconteceu nos dias anteriores? Abraçar alguém de quem carrega boas lembranças, mas talvez esteja te traindo atualmente? Ou machucar um desafeto antigo, mas que agora busca te ajudar? Não é à toa que em algumas cenas Leonard, através dos lembretes, busca orientar não somente o próprio raciocínio, mas também os sentimentos. E como será este sentimento, se você sabe que o manipulou, mesmo que não se lembre de como o fez? Ele se torna mais natural por isso?

Desta forma, as atitudes de Leonard podem indicar tanto que ele encontrou uma forma de lidar com a sua doença ou então que ele evita desesperadamente arcar com as consequências dela. E, mesmo que nossa memória funcione perfeitamente, Leonard avisa que podemos distorcer nossas lembranças de acordo com o contexto do acontecimento. A mesma comida pode ter um sabor diferente para uma pessoa alegre e outra triste. Leonard considera isso uma vantagem na sua busca. Já os espectadores entendem que é mais um esforço dele de se concentrar em se manter ativo. E não se pode condená-lo, porque não saberíamos se nossas atitudes seriam diferentes na mesma situação. Principalmente porque lembrar ou esquecer são ações que não estão inteiramente dentro do nosso controle, mas ainda são melhores que depender somente de recados e fotos.

"Eu tenho que acreditar num mundo fora da minha própria mente. Eu tenho que acreditar que minha ações ainda têm sentido, mesmo que eu não possa lembrar delas. Eu tenho que acreditar que quando meus olhos estão fechados, o mundo ainda está lá. Eu acredito que o mundo ainda está lá? Ainda está lá fora?... Sim. Todos nós precisamos de espelhos para lembrar de quem nós somos. Eu não sou diferente."

Leonard Shelby


4 comentários:

Repórter de Sandálias disse...

Fazia tempo não passava por aqui... Aliás, tempo é uma coisa rara para mim ultimamente. Mas sempre encontro coisas boas por aqui. E, falando em tempo, assisti Amnésia e, realmente, a estrutura de cronologia reversa narrada no filme é bem marcante. Quem dera eu pudesse fazer isso e voltar o tempo quando desse só para tentar mais uma vez ou lembrar das coisas que deixei passar... Bjs

Srta. JATENE, Íris disse...

Nossa, não tinha me tocado que o problema dele era quase um Alzheimer, que apaga a memória recente, mas mantém a lucidez... Isso deve ser bem mais complicado...
E o filme é realmente muito bom!

CrápulaMor disse...

Também assisti a esse filme, e gostei muito! A história é bem diferente. Outro filme interessante, que começa pelo final, é Irreversível, com a antológica cena de estupro, das mais chocantes.

Ariana Luz disse...

mesmo que nossa memória funcione perfeitamente, Leonard avisa que podemos distorcer nossas lembranças de acordo com o contexto do acontecimento (Oscar)


Acredito que voltar aqui é mais emocionante pela sensação de nunca ter ido! escreves maravilhosamente bem..

Flores.

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