Fatos

Mais de uma vez encontrei pessoas que se diziam desiludidas com a igreja católica. Não se tratava apenas de um rápido desapontamento, logo esquecido para se tocar a vida. Era uma crise de fé mesmo, de duvidar de algo considerado santo ou sagrado, de não entender as razões da sua doutrina religiosa e se sentir mal por isso. Não somente o catolicismo: já vi adeptos de outras religiões também questionarem sua crença. Sempre me dispunha a conversar, afinal é um tema que sempre me interessou. Mas no fim sempre chegamos ao mesmo ponto: como argumentar sobre um tema que se apoia acima de tudo na crença no místico, ou seja, no que não pode ser provado material e fisicamente? Como questionar uma fé usando registros científicos, históricos e estatísticos se o interlocutor pode dizer simplesmente "mesmo assim eu acredito na minha religião" e transpirar sinceridade nesta resposta? Não sei. Acredito que palavras não bastam nesta questão. Precisamos de fatos.

A igreja católica condenar o aborto dos gêmeos da menina de 9 anos estuprada pelo padastro não foi uma surpresa, ainda que a criança corresse risco de morrer se continuasse com a gestação. Os bebês também corriam perigo, pois o aparelho reprodutor da menina não estava completamente formado (9 anos de idade e pesando 33 quilos!). Três vidas em jogo. A igreja católica diz que vida deve continuar, não importa que séculos de estudos mostrem que a continuidade de tais vidas seria logo interrompida de forma traumática. O aborto é realizado. O arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, excomunga todos os envolvidos: a mãe da criança, os médicos, todos que deram assistência à menina, etc. Todos foram excomungados, menos a criança, por ser menor de idade, e o padrasto, porque ele segundo Sobrinho "cometeu um delito gravíssimo, mas, de acordo com o direito canônico, não é passível de excomunhão automática. O aborto é mais grave ainda".

Mais grave que estupro e pedofilia. O Vaticano apoiou a excomunhão. Seria algo grave, se ainda estivéssemos na Idade Média. Mas se é notável o atraso da igreja católica em relação à sociedade atual (embora ela procure ter coerência em suas atitudes) e se toda discussão sobre religião pode terminar no velho ponto de que a fé basta a si mesma, então porque ainda discutimos? Eu mesmo me fiz essa pergunta um ano atrás. Acho que a resposta tem a ver com o tema do post anterior.

Não dá pra negar que há quem encontre em sua religião uma fonte de energia e esperança para continuar vivendo, seguindo certo código de conduta moral e ética que valoriza a existência do próximo. O ato do perdão e da solidariedade pregado principalmente pelo cristianismo ainda encontra espaço neste tipo de comportamento, ainda que esteja cada vez mais distorcido. Mas o grande trunfo da religião é oferecer uma perspectiva post mortem e, desta forma, orientar as ações durante a vida. A figura de uma autoridade etérea que nos vigia e a quem devemos prestar contas (e tirar dúvidas) no além evita uma proximidade maior do caos niilista ou deliberadamente amoral possível de acontecer caso todos acreditassem que tudo o que foi aprendido e realizado terminaria definitivamente com a morte, seja ela no fim de uma velhice saudável ou num acidente inesperado na esquina de casa.

Por outro lado, também é impossível não lembrar que o mesmo conceito de religião que salva pessoas através da fé também as manipula para terrorismo, guerras e outras atrocidades como a Inquisição. E ultimamente este lado sombrio ganha mais destaque do que os seus benefícios. E por isso ainda é válido questionar e discutir atitudes como a do arcebispo de Olinda e Recife: para continuar nos situando no que achamos correto no meio de tantas crenças que não podem ser provadas ou contrariadas. Para evitar a manipulação ideológica. E para, quem sabe, um dia reconhecer que todo ser humano é falível e desesperado, não importa quantos iluminados e reencarnados digam o contrário e que os outros estão errados. Não reconhecer a própria natureza e a diversidade de opiniões não é um bom começo para quem quer fazer do mundo um lugar melhor.

2 comentários:

Anônimo disse...

O senhorito me deve uma conversa dessas... Acho que seria lindo se tivéssemos pelo menos um católico, quiçá um budista entre os debatedores. A tribuna já se sabe onde. Ah, só pra ilustrar a discussão igreja/sociedade contemporânea, procurar o verbete DOGMA; mais esclarecedor impossível.
Abração, amigo!
Luana

CrápulaMor disse...

Eu não sei como as pessoas ainda levam tão a sério o que falam Bispos, Vaticano, religiões de maneira geral. Essas pessoas só prestam um grande desserviço ao esclarecimento da população. Esse obscurantismo ultrapassado, essa mentalidade medieval, tudo isso já deveria estar devidamente superado. Pelo menos pra quem quer falar sério.

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